Psicóloga Maria Alice Salles | Sentimentos de uma Filha em uma CTI
348657
post-template-default,single,single-post,postid-348657,single-format-standard,eltd-cpt-1.0,ajax_fade,page_not_loaded,,moose-ver-1.1, vertical_menu_with_scroll,smooth_scroll,fade_push_text_right,blog_installed,wpb-js-composer js-comp-ver-4.11.2,vc_responsive

Sentimentos de uma Filha em uma CTI

Prezado Hospital:

Venho por meio desta, relatar meus sentimentos à respeito da estada de meu pai por 31 dias neste Hospital (irei manter sigilo do nome do Hospital e Equipe).

Meu pai faleceu em junho de 2017. Colocamos no Jornal Zero Hora, a participação e agradecimento aos dois médicos que cuidaram do mesmo.

Tenho certeza que todos fizeram o melhor que poderiam ter feito, dentro de um sistema que preserva protocolos rígidos, porém a falta de humanizar mais o serviço é uma necessidade urgente.

Meu relato serve para reforçar a necessidade deste e dos demais Hospitais, em desenvolverem um treinamento sistemático de Humanização de todos os seus profissionais que estão envolvidos frente a frente com o paciente da UTI e ou CTI. Não basta terem boas técnicas médicas, bons recursos de máquinas e medicamentos. Precisam investir muito mais em EMPATIA, sentimento este tão necessário em ambiente hospitalar e atualmente encontra-se negligenciado.

Sabíamos que a idade do meu pai, 84 anos, bem como o seu problema era sério, porém assintomático. Meu pai sempre fora ativo e cuidador de sua saúde com melhores médicos e seguindo todas as orientações. Chegou caminhando no Hospital em um domingo, após almoçar com toda a família. Meu irmão, médico, achou adequado levarmos nosso pai para fazer exame de sangue devido a sua anemia, a qual se manifestava de dois em dois anos e precisava ser transfundido. Enfim, meu pai chegou bem vivo ao Hospital!

Ao ser atendido pela triagem queriam fazer uma ressonância do crânio, sendo que já sabíamos que o problema do pai era anemia e problema cardíaco. Veio com o sintoma de tontura. O médico que lhe atendeu não olhou nos olhos do meu pai, não abriu o sistema para ver que ele já havia sido internado para transfusão algumas vezes no Hospital. Seu interesse a aprendizagem era seguir o protocolo do idoso: idoso com tontura precisamos descartar problema neurológico. Parece até obvio, porém idoso também pode falar, idoso com tonturas pode ser por outros fatores, mas o protocolo diz, o protocolo fala. O idoso não?! Meu irmão que estava acompanhando meu pai, que por respeito ao médico, bem jovem, não se identificou como médico na anamnese. O colega também não olhou nos olhos dele.

O médico, esse pelo que identifiquei inseguro e ou onipotente, seguiu com o protocolo desumano, formal, sem afeto e sem empatia. Um médico que não olhou nos olhos do paciente idoso, ou seja, meu pai. Ao menos o respeito aos mais velhos ele deveria ter, para não referir outras posturas que a medicina não ensina de fato. Quem está lendo este meu manifesto, o qual deixei com a Psicóloga e com a Direção ao sair do Hospital, já deve ter passado por alguma situação parecida. O sistema médico é muito desumano, com exceções.

Orientaram que meu pai ficasse para exames até o outro dia, seguiram a orientação do Cardiologista Clinico do meu pai que trabalhava no Hospital. No dia seguinte meu pai fez alguns exames acompanhado de minha mãe. Às 11h00 eu fui visitá-lo no leito da emergência e ele estava super ativo, mas deitado. Após a endoscopia à tarde, voltou ao leito e passado um tempo referiu mal estar, solicitaram que minha mãe saísse da observação e aguardasse na recepção. Segundo relato de minha mãe aconteceu às 16h30.

Cheguei para ver meu pai por volta das 18h30, minha mãe permanecia sozinha na recepção, sem entender muito o que estava acontecendo ou melhor, negando tal situação. Conversamos e tomei a iniciativa de pedir para ver meu pai e logo liberaram. Encontro uma equipe em volta dele às 19h15 e lá estava meu pai entubado e sedado. Fiquei apavorada. O médico disse que ele quase parou duas vezes e teve uma hemorragia. Fui dar a notícia à família. Desabamos! Queríamos fazer tudo que fosse possível para o pai ir para casa logo. Negação coletiva da família e união também. Foi solicitado uma tomografia abdominal, providenciamos a autorização. Meu irmão médico iria acompanhar.

Agora começo a relatar o atendimento desumano que vivenciamos em todos os 31 dias, refiro desumano por que certamente poderia ter sido bem diferente. Desumano sim, por que precisamos solicitar algumas coisas aos plantonista e nos calar por outras tantas coisas desagradáveis ali sentidas e observadas. Desumano pela falta de empatia de médicos, enfermeiros e técnicos e empatia de poucos, mas que bom que poucos, ao menos, tiveram empatia pela situação tão dolorosa da perda que estávamos vivenciando. Os dois médicos principais que cuidaram de meu pai deram muito suporte, mas eles não ficavam no leito, apenas examinavam diariamente e prescreviam.

Eram 00h3 de uma segunda-feira, meu pai teria que fazer a tomografia com um familiar junto. Um filho iria junto, somos em três. Como todo o Hospital, muitos exames demoram e sempre têm pacientes na frente, pensávamos nós. Quando fomos pedir notícias pela demora, qual foi nossa surpresa: ele já havia feito o exame e estava em um leito no CTI. E nós, a família ignorada? Na recepção do Hospital e ninguém avisou, ficamos 5 horas sem noticias. Aguardando, pois somos educados e sabemos que em um Hospital nem tudo sai no horário previsto.

Durante toda a internação me perguntava: Será que a equipe tem família? Será que a equipe tem pai? Tem mãe? Tem filhos? Não pensam no paciente como alguém que pode estar sentindo-se só, que pode se deprimir e morrer por isto?

Meu pai teve muitas complicações clinicas que devem ter favorecido o “dellirium”, eu não entendia tal sintoma e identificava: solidão, susto pelo ocorrido, ambiente psicótico devido aos barulhos fortes e constantes do ambiente e a falta de conversa em relação aos procedimentos. A primeira médica, novinha, na internação que o atendeu falava bem alto: JOÃO, JOÃO! Meu pai era em primeiro lugar: SEU JOÃO e eu imaginava: será que ele esta surdo? será a sedação? Ele se debatia em alguns momentos e os médicos diziam: isso é “dellirium”. Eu pensava: o ambiente é diferente, é estressante com os mais diversos barulhos, tinha um carrinho que trazia suprimentos que parecia um carrinho de supermercado estragado. A forma de tratá-lo, por alguns profissionais que mexiam nele é de enlouquecer qualquer um.

Meu pai deitado, no bom do sono reparador, quando chega um profissional fisioterapeuta ou técnico de enfermagem e rapidamente fala que é preciso aspirar e rapidamente começa: Vamos aspirar! Com muita agilidade e facilidade para ver toda a expressão de dor e desconforto do meu pai, não para com a sua técnica contrária ao bom senso e à razão. Um absurdo! Pois é preciso aspirar. O sangue vem a toda hora e a técnica da rapidez tanto dentro da boca quanto do pulmão não para. Meu Deus, não preparam o paciente! Meu Deus, por que não fazem mais devagar? Onde esta o carinho? Será que acreditam que ele tem sentimento? Será que imaginam que está vivo? Será que precisam anotar que aspiraram? Será que tal procedimento deve ser feito assim como uma tortura? Por que estressar tanto o paciente?! Fazer rápido para acabar logo? Um ato da maior violência a um ser humano que se sente sufocado e chora através das lagrimas, pois estava entubado e sedado. Presenciei e não falava nada, tinha muito medo de me tirarem dali e não deixarem eu ter mais acesso facilitado. Depois do paciente entrar em um torpor e agitação, o que os profissionais fazem? Deixam ele sozinho no torpor ou vêm uma medicação para agitação. Fácil de sair do Dellirium assim não é?

Meu pai deitado e já se comunicando estava um pouquinho lúcido, ao menos achávamos. Vem um profissional e vai aplicar algo na mão dele, tira o cobertor rapidamente e ele se mexe. Por que tirar o cobertor rapidamente? Onde está o carinho? Imagina tu em casa dormindo e alguém tira o teu cobertor rapidamente? Onde está o respeito? Desenvolver uma psicose nesse ambiente é muito favorável. Meu pai tinha uma vida com afeto e respeito, assim como ele, era cuidadoso com as pessoas, assim como todos eram com ele na vida fora do Hospital.

Meu pai deitado e dormindo, chega um profissional e quer ver se ele acorda, com certeza residente, pela idade, sendo um Hospital particular que tem residência: Fala alto o nome dele, alto ao ponto dele se assustar. Por que não começar falando baixo? Nós, a família, falamos com a voz normal e quando não muito sedado o meu pai responde. Já testam falando alto. Que susto!   

Percebo meu pai incomodado, mesmo sempre muito sedado nós percebíamos alguns desconfortos. Eu pergunto no inicio da tarde: Pai tu fizeste cocô? Ele responde com a cabeça que sim. Eu comento para o profissional que está cuidando dele e com muitíssima naturalidade ele refere “Agora tenho que ajudar a minha colega. Temos pacientes mais graves que ele e que tenho que ajudar agora, quando der, eu troco. Agora não posso”.

Meu Deus, que facilidade para falar a um familiar que deixará o paciente sem ser atendido. Meu pai tinha uma técnica de enfermagem só para ele, pois fazia parte do protocolo do Hospital e do plano de saúde dele. Naquele dia tal protocolo não funcionou e eu não poderia reclamar. Poderiam me solicitar que saísse como muitas vezes fizeram e me deixavam mais de duas horas esperando, pois iriam fazer um procedimento.

Enquanto meu pai está super sedado e com a boca seca, eu observo que ele não foi mexido desde que sai da visita da manhã. Eu e minha mãe podíamos entrar às 9h após o holding clinico e às 12h pediam para eu sair e me deixaram entrar novamente às 16h até 22h.  O setor estava claramente esvaziado de profissionais, então questionei com delicadeza. Foi revelado que não conseguiram dar atenção ao meu pai neste dia por ter falta de colegas e por ter tido intercorrência. Meu Deus, que facilidade para deixar o paciente sem atendimento. Estávamos fazendo de tudo para meu pai viver e parece que a CTI vendo o paciente morto estava ok. Claro que os aparelhos estavam ok, até por que apitavam, caso necessitasse controle manual. Quanta impotência sentia, precisava da equipe, sei que faz parte das regras, mas quanta impotência senti.

Estava profundamente triste por deixar o meu pai ficar sem os nossos cuidados ou com um técnico de enfermagem que pudesse ficar ao lado dele cuidando, dando atenção e carinho o tempo todo. Sabíamos que existem regras na CTI. Com meu conhecimento de psicóloga tinha certeza de que se eu ficasse mais perto, poderia favorecer o sensório dele para evoluir no tratamento. Estava seguindo os protocolos rígidos da CTI, super medicado e eu queria tranquilizá-lo para não se agitar e às vezes, conseguia. Ficava muito impressionada quando um profissional sem a menor afetividade pede para eu sair por que vai mexer no meu pai. Fala com muita naturalidade, sim o paciente é dele. E o que eu sou dele? E o que ele é meu?

Observava que os técnicos e enfermeiros só falavam com pacientes vigilantes, os outros eles mexiam e os pacientes abriam os olhos no susto. Eu vi meu pai se assustar muito e muitas vezes e quando eu estava perto falava sobre o procedimento do momento, explicava tudo com carinho e dado de realidade. Percebi lágrimas em seus olhos quando manipulado de forma rápida e mecânica ou sentindo muito desconforto.

Em um episódio, eu e minha mãe estávamos conversando com meu pai e ele respondendo com a cabeça: sim e não. Inicia a agitação pela dor nas costas ao nosso ver. Há dois anos ele fazia fisioterapia, três vezes por semana, para a osteoporose na lombar. O que o profissional que está com ele refere: Vamos usar morfina, ele se agitou com a família. Que falta de sensibilidade! Que desumano! Eu e meu irmão, médico, o acalmamos fazendo massagem em suas costas e nosso irmão mais velho comprou um colchão especial para colocar no leito. A equipe usava sedativos para qualquer movimento dele. Quando nós estávamos com ele não precisava e eu dizia deixa que nós o acalmamos e conseguimos.

Um dia estava eu e minha mãe no quarto e meu pai se agitando com a intubação, mexi no travesseiro dele para ficar melhor acomodado e mesmo assim ele não ficou e nesse momento chega um profissional e diz rispidamente: Quem tirou o travesseiro dele?! Eu referi fui eu, com muito medo, pois eu iria ir embora e meu pai ficaria ali aos cuidados desse profissional.  Não fui eu quem agitou ele, meu pai está vivo e quer se comunicar! Apenas pensei e não respondi, pois poderiam impedir que eu entrasse na CTI.

Ah! Meu pai! era um homem alegre, comunicativo, culto, afetivo, caprichoso, com nenhuma tolerância a dor.

Percebi que o turno manhã e tarde da CTI eram os mais agitado e com pouca tolerância a dar atenção afetiva. Sempre que possível, levávamos presentes para quem estava cuidando do meu pai, ele era muito especial para nós e queríamos que cuidassem bem dele. Agradávamos para agradarem ele.

Agradeço a palavra de carinho e conforto que alguns médicos da CTI nos deram:” tenham fé, tenham paciência…” Lamento outros que só reforçam o óbvio: “é sério, é grave” e logo saíam do leito, talvez por que eles também não suportavam estar perto da morte, mesmo sendo médico da CTI. A impressão que fiquei foi o quanto o desumano justifica a conduta desses. Justamente por não quererem dar atenção humana aos pacientes trabalham na CTI? Sim, CTI tem pessoas graves que pouco falam, pouco vivas. O trabalho é avaliar exames, medicações e condutas. Não precisa comunicação verbal afetiva? Ter um pai na CTI é sério! Ter um pai na CTI aos 84 anos é grave!

Como Psicóloga e com muita vontade de estar o máximo de tempo acompanhando meu pai, solicitei ao setor de psicologia do Hospital liberação para ficar o máximo de tempo possível na CTI e consegui. Observava que eu era a única familiar de todos os leitos que ficava mais tempo.

Na segunda semana de CTI do pai, estávamos no horário de visita e solicitamos a presença do médico de plantão. O mesmo foi chamado e perguntou: “O que vocês sabem do caso?” Meu pai entubado brigando com o tubo do jeito que conseguia e sedado aos 84 anos, precisava saber mais?!  Nós, na maior tristeza do mundo, querendo ser percebidos e atendidos. O que nós sabemos?! Mais uma atitude desumana para a nossa coleção e ainda tínhamos que ser educados, nosso pai ia ficar e nos íamos sair da CTI.

O que nós sabemos do caso? No mínimo, a médica de plantão deveria ter perguntado ao técnico que acompanhava meu pai, pois quem éramos nós? Também se não perguntasse, olhasse para nosso rosto e veriam que éramos ao menos parentes de longe, somos muito parecidos com o meu pai e como ele estava saudável antes de entrar no Hospital sua fisionomia estava preservada. Ficou preservada até o fim, por sinal. “O que sabemos do caso?” Esta pergunta é para os estudantes no holding clínico. “O que sabemos?” Era só ela olhar a agonia do meu pai mordendo o tubo, com os olhos fechados. Meu Deus, antes de tudo a pergunta deveria ser: O que vocês são do paciente?

Queríamos saber da evolução dele do dia e a resposta novamente  era “é sério, é grave”. A médica era nova, acredito que residente, e o afeto com os familiares onde fica? Enfim, solicitamos traqueostomia e fora realizado. Nós que solicitamos.

Então, não devemos perguntar mais nada quando o caso é sério, é grave, não temos mais nada para ouvir? Os médicos não tem mais nada para fazer se é grave, é sério? Será que os médicos tem pai? Será que os médicos são filhos? Talvez sejam apenas médicos-robôs.

A Humanização dos Hospitais é uma necessidade urgente.   

 



× Como posso te ajudar?